Gerivaldo Neiva *
Ontem (24/09) participei do VII Congresso de Direito do Sudoeste da Bahia, em Vitória da Conquista (BA), e tive a prazerosa sensação de abraçar de verdade alguns amigos virtuais, outros não, que há tempos andávamos trocando meros e frágeis abraços virtuais. Também foi bom demais rever os colegas juízes da região (Reno, Rodrigo e Janine) e abraçar de verdade o colega Douglas de Melo (MA) e dizer o quanto vibrei com sua participação no programa Na Moral, na Rede Globo, comandado por Pedro Bial.
Dividi a mesa com Aderlan Crespo, Pietro Nordella e Dimitri Sales. Pelos corredores e jantares, encontros e reencontros com Thiago Minagé, Bruno Espiñeira, Riccardo Cappi, Maria Beatriz, Luciano Martinez, Fabiano Pimentel, Luiz Flávio Gomes, Regina Erthal, Alice Bianchini, dentre outros e outras. Sentimos demais a ausência do Juiz Marlon Reis (autor do sucesso O Nobre Deputado) e de Eduardo Rabenhorst. Como precisei retornar mais cedo – o TJBa me autorizou o afastamento, por motivo das eleições, somente no dia 24/09 – não tive a oportunidade de abraçar os colegas juízes Marcelo Semer, Rubens Casara e João Marcos Buch, bem como o Márcio Sotelo, que fariam também o lançamento da coleção Para Entender Direito.
O tema do congresso foi “Direito e Sociedade: prevenção e responsabilidade ou punição e culpa?” e minha palestra teve o título “Loucos, drogados e bandidos: o que o Direito pensa e faz com eles!”. Em outro texto comentarei sobre o tema e a palestra.
Voltemos, no entanto ao título deste texto: “Doutor, quem “bota o dedo” não pode assinar Contrato Social”. Pois bem, durante a palestra, quando abordava o item “bandidos”, apresentando dados sobre o perfil da população carcerária brasileira (metade cometeram crimes contra o patrimônio e mais um quarto cometeram crime de tráfico, totalizando 75%), lembrei-me de um episódio acontecido em uma das tantas comarcas e varas das quais fui Juiz, titular ou substituto, e com um Promotor de Justiça que também não lembro mais o nome. Assim, já na fase de alegações finais, o Promotor, em início de carreira e com gosto de sangue na boca quando acusava e requeria condenação de um “bandido” a pena privativa de liberdade em regime fechado, indicando para o acusado, referiu-se ao mesmo como “um subscritor do Contrato Social e que, nesta condição, deveria obedecer as normas vigentes, sob pena de desagregação social e fim do Estado Democrático de Direito, que garantia à vítima o direito à propriedade e que o judiciário tinha o dever de garantir este direito”.
O acusado era um ladrão contumaz. Tinha uma extensa lista de antecedentes e era reincidente. Dizia que era apenas usuário, mas a própria família afirmava que era dependente e que roubava para manter o vício. Na qualificação, informava que tinha frequentado a escola, mas que não tinha aprendido nada, sequer assinar o nome. Era meio que debochado e desafiador. Por várias vezes havia decretado sua prisão preventiva, mas o caso daquele rapaz jamais seria resolvido com pena privativa de liberdade, pois era muito mais cliente de um sistema de saúde pública e de assistência social do que do sistema de justiça criminal.
Retornando à audiência, ao ouvir a acusação referir-se a “Contrato Social”, o rapaz não se conteve e mostrou-se indignado com o Promotor: - Pera aí, doutor! Eu confessei que roubei o receptor da parabólica, o botijão de gás, os perfumes, a máquina fotográfica, as joias... Agora, doutor, eu não assinei este tal de Contrato Social que o senhor está me acusado de ter assinado, não! Doutor, eu nem sei assinar meu nome e quem “bota o dedo” não pode assinar contrato de nada!” (“Botar o dedo”, no interior, significa apor a impressão digital).
De imediato, o ilustre representante do Ministério Público mostrou-se indignado com a inconveniência do acusado e ele mesmo mandou que se calasse e que respeitasse o ambiente e as autoridades ali presentes. Permaneci em silêncio. Não que a altivez do Promotor tivesse me impressionado ou intimidado. Na verdade, meu silêncio era uma tentativa de ouvir algo de Thomas Hobbes, John Locke ou de Rosseau. Ora, não foram eles os principais teóricos do modelo de Estado (esqueci de Montesquieu e Maquiavel?) adotado pela burguesia no poder, justificando um modelo de organização social fundado na teoria do “Contrato Social”, agora adotada por um Promotor de Justiça em suas alegações finais para requerer a condenação de um delinquente comum?
Ora, quando um acusado, delinquente comum, ladrão de quintais, analfabeto, usuário de múltiplas drogas, estigmatizado pela família e comunidade, em plena audiência judicial, rebate o Promotor de Justiça que lhe acusa de ter violado o “Contrato Social, alegando ser analfabeto e que “botar o dedo” não vale como assinatura, torna-se razoável tentar ouvir o que dizem as vozes dos que desenvolveram a teoria do “Contrato Social” e também dos que a defendem até os tempos atuais.
Naquele tempo não conhecia ainda Giorgio Agamben e, muito menos, seu livro “Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua.” [1] De outro lado, já tinha plena convicção de que aquele acusado, posto à minha frente para ser julgado por ter violado o patrimônio de outra pessoa, seria mais um que seria excluído do meio social por não ter conseguido um lugar sobre o grande sombreiro do “Contrato Social” e que seria conduzido a um espaço em que não vigora o Estado Democrático de Direito, o sistema penitenciário. Contraditoriamente, por fim, o sistema de justiça criminal especializou-se em prender os “não-subscritores” e não sombreados pelo Contrato Social e conduzi-los, em seguida, para a condição de “não-sujeitos” e “não-pessoas”, desmerecedores da atenção e proteção do Estado.
Finalmente, cumprida a pena ou adquirido o benefício a outro regime ou liberdade condicional, nosso condenado continuará desamparado pelo Contrato Social e, ao lado disso, também lhe faz companhia agora a condição de ex-presidiário, conhecedor dos horrores da prisão e, quase sempre, cumpridor de missões externas que lhe determinaram o comando da facção a que foi obrigado e se associar. Não lhe resta muito. É pouco provável que não volte a praticar crimes e quase certo que será morto em confronto com a polícia ou “justiçado” por não ter cumprido alguma missão da irmandade a que jurou obediência eterna quando esteve no inferno que é o sistema penitenciário brasileiro.
* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e Porta-Voz no Brasil do movimento Law Enforcement Against Prohibition (Leap-Brasil)
[1] Giorgio Agamben traz à luz o vínculo oculto que sempre ligou a vida nua, a vida natural não politizada, ao poder soberano. Uma figura do direito romano arcaico será a chave que permitirá uma releitura crítica de nossa tradição política - o homo sacer, um ser humano que podia ser morto por qualquer um impunemente, mas que não devia ser sacrificado segundo as normas prescritas pelo rito. O tema vincula-se com as futuras épocas, uma vez que o corpo biológico do cidadão veio a ocupar uma posição central nos cálculos e estratégias do poder estatal. A política tornou-se biopolítica, e o campo de concentração surge como o paradigma político da modernidade. (Sinopse no site da livraria Cultura)